quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Manual aprovado pelo Ministério da Defesa lembra ditadura militar


No dia 8 de janeiro deste ano, o Portal Brasil anunciou que o Ministério da Defesa aprovou o Manual Unificado das Forças Armadas para Garantia da Lei e da Ordem (GLO) – clique aqui para ler. O documento orienta a ação das tropas militares quando solicitadas para ações de garantia da lei e da ordem, de acordo com as normas legais e constitucionais. A portaria que institui este "manual" foi publicada no Diário Oficial da União de 20/12/2013. A partir desta data passou a ter vigência. Segundo o Portal Brasil, o conteúdo deste manual será objeto de preparação nas escolas e academias militares.

O manual sintetiza a ressignificação do conceito de "segurança pública" nesta fase do projeto neodesenvolvimentista. No final dos anos 1980, o documento da Escola Superior de Guerra (ESG) intitulado "Estrutura do Poder Nacional para o Século XXI" apontava como grandes ameaças à lei e a ordem os cinturões de miséria e os "menores" abandonados (sic) cuja contenção deveria ser feita pelas forças policiais e também pelas Forças Armadas. A concentração brutal de renda, o Estado mínimo e as políticas neoliberais contribuíam para a geração desta grande massa de excluídos e o documento da ESG daquela época apontava este "efeito colateral" do neoliberalismo como "perigo" para a "lei e a ordem". Na atual fase, as manifestações populares, movimentos sociais e outros atores políticos fora do espectro do capital que questionam a concentração de renda e de patrimônio, a luta contra o racismo estrutural e contra a prioridade dada ao grande capital, entre outros, é que são classificadas como "perigo" para a lei e a ordem.

Ao ler o manual, várias passagens lembram o período da ditadura militar. Nas páginas 14 e 15, são apresentados os conceitos básicos:
Operação de Garantia da Lei e da Ordem (Op GLO): operação militar conduzida pelas Forças Armadas, de forma episódica, em área previamente estabelecida e por tempo limitado, que tem por objetivo a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio em situações de esgotamento dos instrumentos para isso previstos no art. 144 da Constituição ou em outras em que se presuma ser possível a perturbação da ordem);

Forças Oponentes (F Opn) são pessoas, grupos de pessoas ou organizações cuja atuação comprometa a preservação da ordem pública ou a incolumidade das pessoas e do patrimônio;
Ameaça são atos ou tentativas potencialmente capazes de comprometer a preservação da ordem pública ou a incolumidade das pessoas e do patrimônio, praticados por F Opn previamente identificadas ou pela população em geral.

Mais adiante, na página 18, o manual afirma "que o emprego das Forças Armadas em Op GLO tem por objetivo a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio em situações de esgotamento dos instrumentos a isso previstos" (grifo meu). Embora, no início do manual, define-se que as operações de garantia da lei e da ordem não se assemelham a uma "guerra", no tópico de preparação e organização de tais operações, que consta no Capítulo IV, termos como "inteligência", "contra-inteligência", "operações de comunicação" e "operações psicológicas" são detalhados e colocados como instrumentos essenciais para tal ação. Mais adiante, nos anexos em que constam os modelos de documentos de diagnóstico de tais ações, são detalhadas "forças oponentes", "forças aliadas ou amigas", etc.
As operações psicológicas (p. 28) "revestir-se-ão de suma importância e, sempre que possível, antecederão o emprego da tropa por meio de campanha psicológica a ser desenvolvida sobre o público-alvo considerado" (grifo meu) e poderão, ainda segundo o texto, ter continuidade e extrapolar a área de operações.

Na página 29 do documento, há a caracterização do que seriam as "Forças Oponentes" (que são "diferenciadas" conceitualmente de "inimigo" pois, segundo o documento, este segundo termo se adéqua mais a "operações de guerra").  O item 4.3.2 define Forças Oponentes como: "a) movimentos ou organizações; b) organizações criminosas, quadrilhas de traficantes de drogas, contrabandistas de armas e munições, grupos armados etc; c) pessoas, grupos de pessoas ou organizações atuando na forma de segmentos autônomos ou infiltrados em movimentos, entidades, instituições, organizações ou em OSP, provocando ou instigando ações radicais e violentas; e d) indivíduos ou grupo que se utilizam de métodos violentos para a imposição da vontade própria em função da ausência das forças de segurança pública policial." (grifo meu).

Note-se que movimentos e organizações (sociais?) são definidos como potenciais forças oponentes e colocados no mesmo patamar que organizações criminosas. Assim como "pessoas instigando ações radicais e violentas" (qual é o critério para se definir "ações radicais e violentas?"). Se combinarmos que as operações de garantia da lei e da ordem objetivam proteger, entre outras coisas, o patrimônio, que forças oponentes podem ser movimentos e organizações e pessoas com ações "radicais e violentas", uma ocupação do MST, de estudantes em uma reitoria, de indígenas em espaços públicos e até os "rolezinhos" no Shopping Center podem ser classificados nisto e serem tipificados como "forças oponentes".

No item 4.4, as "ameaças" que tais "Forças Oponentes" podem fazer são, segundo o manual: a) ações contra realização de pleitos eleitorais afetando a votação e a apuração de uma votação; b) ações de organizações criminosas contra pessoas ou patrimônio incluindo os navios de bandeira brasileira e plataformas de petróleo e gás na plataforma continental brasileiras; c) bloqueio de vias públicas de circulação; d) depredação do patrimônio público e privado; e) distúrbios urbanos; f) invasão de propriedades e instalações rurais ou urbanas, públicas ou privadas; g) paralisação de atividades produtivas; h) paralisação de serviços críticos ou essenciais à população ou a setores produtivos do País; i) sabotagem nos locais de grandes eventos; e j) saques de estabelecimentos comerciais. Grifei algumas ações que apontam para uma criminalização de ações de movimentos sociais. Exemplos: passeatas e manifestações públicas (bloqueio de vias públicas de circulação); ocupação de terras e moradias por parte de movimentos de sem teto e sem terra (invasão de propriedades privadas), ocupação de órgãos públicos (invasão de instalações públicas), greves (paralisação de atividades produtivas), greves de servidores públicos ou do setor de transporte (paralisação de serviços essenciais).

Sem contar ainda que o documento criminaliza as tais Forças Oponentes ao responsabilizá-las pelos "distúrbios públicos, saques, depredação" quando tais ações ocorrem, quase sempre, quando as forças de segurança radicalizam na repressão gerando climas de tensão e revolta entre manifestantes. Mas, como diz o próprio documento, as forças de segurança são "Forças Amigas e Aliadas".

Na página 31, as ações de Operações de Garantia de Lei e Ordem por parte das Forças Armadas são elencadas. Entre outras, destacamos: controlar vias de circulação urbanas e rurais; controlar o movimento da população; evacuar áreas ou instalações; interditar áreas ou instalações em risco de ocupação; prover a segurança das instalações, material e pessoal envolvido ou participante de grandes eventos; realizar a busca e apreensão de materiais ilícitos (qual é o critério para se definir o que é lícito ou não?); vasculhar áreas (privadas inclusive?). Tais atitudes realizadas por uma força militar se assemelham a um estado de sítio ou a um regime autoritário. Nota-se aqui a preocupação com a segurança dos "grandes eventos" – provavelmente a realização da Copa do Mundo em junho no Brasil e o medo das manifestações foi o elemento principal de motivação da produção deste texto. A segurança dos "grandes eventos" aparecerá também na p. 29, item 4.4 – "ameaças – sabotagem nos grandes eventos".

Entre as páginas 36 e 38, são definidas os empregos gerais e singulares de cada uma das forças (exército, marinha e aeronáutica) e as diretrizes para o preparo das mesmas para esta operação.

Sintomático que tal manual seja produzido quando a periferia resolve ir as ruas, aos shoppings, aos territórios nos quais o racismo e a opressão de classes coloca barreiras físicas e simbólicas. Fundamental que os movimentos sociais leiam este documento e o denuncie publicamente pois é um desatino a existência de um texto como este em um Estado democrático e de direito e que tenta romper com o passado autoritário.

http://revistaforum.com.br/quilombo/2014/01/15/ministerio-da-defesa-aprova-documento-tipico-de-ditadura-militar/


__,_._,___

Nenhum comentário: